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O Cuidado e a Paternidade Responsável - Dr. Sávio Bittencourt

23 de abril de 2010


O Cuidado e a Paternidade Responsável - Dr. Sávio Bittencourt


1. Introdução

Tomando-se o Direito em sua vocação básica, que é servir à sociedade como uma forma e manutenção da paz social, compondo os conflitos existentes de modo harmônico, se pode inferir que a existência de conflitos crônicos no seio social aponta para a relativa ineficácia da ordem jurídica.
Assim, sendo o Direito a forma mais democrática de regulação social, cujo objetivo é garantir que a sociedade possa existir com razoável estabilidade e, sobretudo, capacidade de resolução pacífica dos conflitos de interesses, a persistência de determinados problemas podem ser considerados sintomas da incapacidade da ordem jurídica de compor tais conflitos.
A tentativa de exercer este controle se opera com a eleição de valores importantes para o grupo social, que passam a merecer a proteção legal, ganhando a partir desta previsão legislativa o status de bem jurídico, ou seja, objeto da tutela legal. Pode-se dizer que o Direito pressupõe a escolha de bens jurídicos através da edição de leis, cujo fito é protegê-los, tutela-los. A lei manifesta um cuidado obrigatório com estes valores, que vai vincular a conduta de diversos atores sociais mobilizados na garantia de sua proteção efetiva.
Todavia, em diversas oportunidades, a ambição de controlar pacificamente sociedade, compondo os conflitos de interesses e protegendo os bens jurídicos se vê arruinada por diversos motivos, provocando o que se costuma denominar de anomia. Este fenômeno decorre de fatores internos e externos ao Direito, sendo essencial para a manutenção da paz social que tais fatores sejam compreendidos e transformados, aumentando as possibilidades de eficácia da lei.
Tomadas estas premissas, já é possível se delinear o escopo deste ensaio: longe de se pretender produzir um artigo técnico-jurídico sobre o direito da infância e juventude, aqui se objetiva a provocação empírica de questionamentos sobre os fatores que impedem que o cuidado jurídico seja eficaz e proteja valores fundamentais que, de fato encontram-se expostos e desprotegidos.
Em função deste escopo estarão ausentes, ao longo deste ensaio, citações e referências em notas, dando conta de pesquisas de doutrina e jurisprudência. Este trabalho quer dar conta apenas do balanço da experiência do autor, como militante do movimento social de defesa da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes que, hoje, aos milhares, encontram-se institucionalizados e afastados do seio aconchegante de uma família.
Destarte, partir-se-á deste gravíssimo e pouco conhecido problema social para tentar desnudar as causas e sugerir soluções que possam garantir a reversão deste quadro. O cuidado, tomado nas relações familiares como valor jurídico essencial, será o fio condutor do desenvolvimento do texto, amarrando se encadeamento e sendo fonte de inspiração para algumas conclusões. No tópico que se segue trataremos da questão social a ser enfrentada.

2. O problema: institucionalização indiscriminada de crianças e adolescentes

A situação atual é muito aflitiva: não há condições de se apontar o numero exato de crianças e adolescentes abrigados no Brasil, estimando-se que cheguem cerca de 80 mil. Encontram-se privados de conviver com suas famílias de origem e com pouquíssimas possibilidades de serem acolhidos em família substituta, mormente pela adoção.
No Ordenamento Jurídico em vigor, o abrigamento de crianças é situação excepcional e transitória, sendo solução para situações emergenciais na qual existe necessidade absoluta de se retirar a criança de sua família, podendo ser providenciada pelo Conselho Tutelar, Ministério Público ou pelo Juiz da Infância e Juventude. Contudo, na prática o abrigamento se opera em grande parte pela própria família de origem da criança, motivada por fatores econômicos, sociais e culturais. Este fato acarreta o desconhecimento por parte do Judiciário e do Ministério Público de parte significativa dos abrigamentos realizados, o que impossibilita a tutela dos direitos destas crianças. Segundo pesquisa do IPEA, Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, realizada em 2000, no Estado de São Paulo, o mais rico e um dos mais bem organizados do país, 46% das crianças institucionalizadas não tinham qualquer procedimento nas Varas de Infância e Juventude, sendo absolutamente “desconhecidas” pelo Judiciário.
É de conhecimento de todos que militam na área da infância e juventude que a Constituição da República dispõe sobre a convivência familiar e comunitária como um direito indisponível da criança, no artigo 227, como se pode inferir de sua leitura:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Veja-se que o legislador constituinte gravou todos os direitos elencados na regra constitucional em comento como prioridade absoluta, o que obriga a todo o interprete desta e das normas infraconstitucionais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, a conclusão que toda forma de privação da convivência familiar deve ser excepcional e transitória. Vale dizer, a Lei Maior impõe uma determinada interpretação, condicionando a aplicação das regras inferiores à obediência ao princípio da garantia da convivência familiar.
Por outro lado, reconhecendo-se que há situações em que a criança necessita ser retirada de seu seio familiar em função de existir algum risco a direito indisponível seu, deve ser permitido seu abrigamento provisório para que o risco seja eliminado e ela possa voltar a seu lar ou, em casos em que esta volta não seja possível, que lhe seja reconhecido a direito a uma família substituta, preferencialmente via adoção.
O fato mais relevante é que o abrigamento só é lícito, por força do citado artigo constitucional, para resguardar interesses indisponíveis da criança. Esta medida não foi criada e não pode ser interpretada como um direito dos pais biológicos, ainda que em situação de pobreza, porque a norma tem como destinatária unicamente a criança. É ela que deve ser prioritariamente atendida, levando-se em consideração que se trata de um ser em formação e em situação de vulnerabilidade acentuada em relação a seus pais adultos. Veja-se que, pelo mandamento constitucional, a própria família é devedora do cuidado essencial à criança e a existência de dificuldades econômicas não pode justificar a condenação de um ser inocente e indefeso a ser criado trancado em um abrigo pelos preciosos anos de sua infância.
Todavia, a despeito da clareza do texto constitucional, o abrigamento se tornou uma medida vulgarizada, exercida sem controle estatal, não sendo eficientes em escala nacional qualquer atuação judicial ou do Ministério Público para reverter este quadro dramático de institucionalização indiscriminada de crianças e adolescentes. São milhares de crianças brasileiras abrigadas por anos a fio, sem ter direito a viver em família e ter uma criação personalizada. O tempo de abrigamento é indeterminado e a experiência tem demonstrado que a criança tende a ser visitada pela família biológica nos primeiros meses de abrigamento e depois vai permanecendo esquecida, crescendo e ser formando psicologicamente em ambiente coletivo, sem incentivos a sua auto-estima, nem a sua constituição de caráter ou educação. A mesma pesquisa do IPEA apontou que o tempo médio de abrigamento no Estado de São Paulo é de quase cinco anos. Levando-se em consideração que a infância dura doze anos, este tempo decorrido em anos de fundamental importância para a formação do ser humano é um crime cometido contra a infância. A realidade demonstra que há milhares de crianças condenadas a esta “morte civil”, varridas para de baixo do tapete da sociedade, sem esperança que as instituições responsáveis por sua tutela tenham sequer consciência de sua existência.

3. O Cuidado essencial: o Princípio Constitucional do Respeito à Dignidade da Pessoa Humana

Colocado o problema que afronta ao bem viver social, embora seja desconhecido da maioria dos brasileiros - até porque as crianças abrigadas não promovem rebeliões, não põem fogo em colchões, nem se fazem representar por “lobistas” nos meios políticos, jurídicos ou jornalísticos – pode-se ter uma idéia das razões pelas quais este direito à convivência familiar não é efetivamente tutelado.
A dignidade da pessoa humana á um princípio basilar do Estado Brasileiro e seu respeito provém da tutela que a própria Constituição faz de bens jurídicos prioritários, como a regra do artigo 227 já citado. Como conseqüência, qualquer desrespeito ao direito de viver em família é uma grave violação a um direito indisponível e deve ser imediatamente objeto de tutela por parte do Ministério Público e da Magistratura. Para cada criança abrigada deveria ser instaurado um inquérito civil, presidido pelo Promotor de Justiça da Infância e Juventude, para investigar as causas de seu abrigamento e as possibilidades de retorno a sua família de origem. Verificada a impossibilidade deste retorno, em tempo curto e previsível, o respeito ao mandamento constitucional obriga aos aplicadores da lei que promovam a destituição do poder familiar e que se encontre uma família adotiva para garantir sua criação com amor.
Este cuidado estatal tem sido negado às crianças abrigadas. É claro que existem Juízes e Promotores de Justiça sensibilizados com a realidade e atuando em suas competências e atribuições com muita dedicação. Contudo, esta atuação isolada destes atores sociais não traduz um interesse institucional pela causa das crianças criadas sem família. Os investimentos estruturais na área são tímidos e demonstram que os tribunais preferem criar fóruns regionais e juizados especiais, para tratar, sobretudo, de causas vinculadas às relações de consumo e às varas de família tradicionais. A prioridade constitucional para os direitos da infância, sobretudo para a questão das crianças institucionalizadas recebe investimentos pífios em termos materiais, sendo mais importante e urgente eu as áreas tradicionalmente contempladas.
A falta de uma legislação que mais claramente aponte para a necessidade de se tratar da criança abrigada para definir sua situação jurídica faz com que o assunto não tenha prioridade para inúmeros juízes e promotores de justiça, geralmente envolvidos com audiências e emergências sociais que batem à sua porta. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que significou um importante marco na evolução do Direito ao abandonar a antiga orientação menorista, parece ter sido “canonizado” por alguns intérpretes que se opõe sistematicamente a qualquer tentativa de aperfeiçoamento. De fato a Estatuto é uma norma socialmente muito bem vinda, mas a ausência de obrigatoriedade de tratamento - com prazos para atuação de juízes e promotores - faz com o que a criança abrigada fique, na prática, em último plano.
Pode-se argumentar, no sentido oposto, é que o ECA efetivamente tutela a criança abrigada, quando afirma ser o abrigo uma solução temporária e excepcional. Em nossa opinião esta é, sem dúvida, a interpretação correta e deveria motivar promotores e juízes a comparecerem cotidianamente aos abrigos para tratar da prioridade constitucional, promoverem as reintegrações das crianças a suas famílias e destituírem corajosa e rapidamente o poder familiar dos que não tiverem condições psico-sociais de terem seus filhos em sua companhia. Contudo, a despeito de ser essa a única interpretação condizente com o texto constitucional, esta atuação é muito menor do que o necessário. No mundo real a infância jaz sem família para milhares de crianças, anos e anos em abrigo sem que as instituições tenham sequer tentado mudar sua realidade. Uma norma mais clara apontando para esta emergência teria grande efeito pedagógico para juízes, promotores e, também, para pais biológicos que não titularizam direito adquirido de abrigar seus filhos, ao contrário do que vem se consagrando ilegalmente na prática.

4. A criança abrigada e o criminoso homicida: absurdos oriundos da falta de proteção processual ao institucionalizado

Atualmente, a triste realidade é que um homicida tem mais garantias de defesa processual que a criança institucionalizada. O assassino, por mais torpe os motivos de seu crime, por mais cruel que tenha sido sua execução, terá direito ao contraditório e à ampla defesa. Terá direito a entrevistar-se com o juiz, no interrogatório, para dar sua versão sobre os fatos. A criança abrigada raramente vê um juiz, nem tem obrigatoriamente um “processo” para tratar de sua situação. O homicida terá direito a um defensor para velar tecnicamente por seu status libertatis com possibilidades inúmeras de manifestações e recursos. À criança abrigada não é nomeado curador, nem ela se entrevista com o promotor de justiça, ao contrário do que ocorre com o adolescente infrator. O homicida não poderá ficar preso processualmente por período indeterminado, podendo se impetrar um habeas corpus para livrá-lo de delongas judiciais injustificadas. A institucionalização de crianças não tem prazo e a prática e que sua “internação branca” dura mais que muitas penas criminais. Poder-se-ia continuar esta esdrúxula comparação para tratar de outros benefícios processuais e penitenciários que concedemos aos acusados de crimes e negamos à criança inocentes vítimas de abandono.
Um dos motivos da ineficácia da ordem jurídica na defesa do direito à convivência familiar é a gritante falta de uniformização dos procedimentos da destituição do poder familiar e de procedimentos de habilitação e cadastro de pessoas candidatas à adoção. A discrepância de ritos e práticas é aberrante, cada comarca parece possuir um “código” próprio. Pode-se citar o exemplo da ação de destituição do poder familiar que dependendo da praxe local pode ser “suspensa” antes da sentença enquanto se aguarda pretendente à adoção ou nem mesmo ser proposta pelo Ministério Público por “falta de interesse” em se destituir um vínculo se não houver adotantes para aquele perfil de criança. Trata-se do paradigma da perplexidade: não há pretendentes para a criança porque ela não está disponível e não se disponibiliza a criança para adoção porque não há pretendentes. Há exemplos suficientes de entendimentos conflituosos que trançam uma teia de contradições aplicadas em comarcas, que em nome da independência funcional de juizes e promotores acabam por desproteger as crianças destinatárias da norma constitucional e credoras do cuidado estatal.

5. Institucionalização de crianças como direito do pobre: a morte do cuidado

Uma outra razão para a delonga demasiada de soluções eficazes para o abrigamento indiscriminado é a demagogia paralizante que assola as relações sociais no Brasil. Este movimento de adoração da pobreza como causa de todas as mazelas sociais e justificadora de qualquer ilícita praticada pelos que nela se encontram. Por esta corrente de pensamento que perniciosamente se instala nas consciências de profissionais pagos para garantir direitos da criança tudo, inclusive o abrigamento e o abandono de crianças, se justifica pela pobreza. Este raciocínio é frontalmente oposto ao mandamento constitucional e se baseia em argumentação muito pouco sólida.
Com efeito, dizer que a pobreza autoriza o abrigamento por tempo indeterminado é privilegiar o direito do adulto em detrimento do direito da criança. Inverte-se a lógica da proteção à criança para se consagrar sua “coisificação”, já que passa ela a ser “pertencente” a sua família e ficar “guardada” pelo tempo que for necessário a sua reestruturação. O mais curioso é que os que levantam esta bandeira atribuem ao princípio da proteção integral o dever do poder público de proteger a família para que ela possa receber sua criança de volta. Sendo insuficientes as políticas públicas para tal fim, a família não poderia ser “penalizada” com a “perda” de seu filho. O raciocínio não é muito profundo em termos de intelectuais e se despedaça ao se constatar a realidade doa fatos.
Primeiro, é necessário se afirmar que a proteção integral se destina à criança. É ela que deve ser integralmente protegida do abandono em instituição, preferencialmente voltando para sua família biológica, mas se isso não for possível no curto prazo, deve ser destinada à adoção para que sua infância não pereça em função de problemas de adultos. Em segundo lugar, dizer-se que a pobreza é “a” causa do abandono não corresponde inteiramente à verdade e é uma injustiça com a maioria esmagadora as pessoas pobres do país que, diante das maiores dificuldades, lutando contra tantos obstáculos, criam seus filhos em sua companhia.
Este raciocínio é compatível com “o mito do amor materno” segundo o qual toda a mãe e todo pai amam seus filhos biológicos de uma forma socialmente uniforme. Nada mais equivocado: há pais e mães biológicos que não tem apreço por seus filhos, por inúmeras razões que não cabem ser aqui discutidas, demonstrando com a falta de afeto seu desamor. O cuidado é o corpo de delito do afeto. Sua ausência do primeiro importa na inexistência ou na insuficiência do segundo. É compreensível que o alcoolismo, o uso de drogas, a ignorância e a criminalidade, dentre outros fatores, possam levar as pessoas a este estado de desapego com seus filhos. É possível e desejável que se tente ajudar estes adultos e promover sua capacitação para a vida em sociedade. Só não é admissível que os filhos destas pessoas paguem com sua infância, trancafiados em instituições, esperando recuperações improváveis e demoradas.

6. O adotante brasileiro e suas preferências: reposicionando o discurso oficial

Tem se tornado comum o discurso que afirma ser o preconceito do adotante brasileiro o causador do grande número de crianças abrigadas. Partindo de um problema real que é a preferência dos candidatos por crianças pequenas e brancas se chega a uma conclusão equivocada que mascara as verdadeiras razões da cultura da institucionalização. É imperioso dizer que este quadro de preferências por nenéns brancos está sendo revertido em números significativos através da atuação do movimento nacional dos grupos de apoio à adoção que tem debatido e incentivado as adoções tardias, interraciais, de grupos de irmãos e de crianças com deficiência, ampliando o espectro de possibilidades dos pretendentes. Os avanços têm sido muito significativos, aumentando o número destas adoções denominadas necessárias.
Todavia, o que torna o argumento falso é que a demora na definição da situação jurídica da criança é a faz sua adoção ser mais difícil. Se houvesse destituição do poder familiar e colocação da criança para adoção em curto espaço de tempo sua adoção seria muito facilitada. A mora é do Ministério Público e do Judiciário que, embaralhados nas teias da paciência perpétua com pais biológicos, em afazeres jurídicos menos prioritários ou simplesmente ignorando o abrigamento da criança, deixaram de oportunamente exercer o cuidado essencial do qual aquele pequeno ser é credor, por mandamento constitucional. Imputar a tragédia deste abandono coletivo aos pretendentes à adoção é uma covardia injusta.

7. Abrigamento e manutenção dos vínculos afetivos: quais os limites?

Uma ocorrência interessante e comum é o senso comum de que a mãe biológica que visita o filho abrigado com alguma freqüência mantém uma relação apta a “manter os vínculos familiares”, sendo que neste caso a destituição do poder familiar seria inviável por existirem laços de afeto que o justificam. Nestes casos, os atores sociais incumbidos de solucionar a situação da criança, evitando seu abandono e institucionalização, devem se debruçar com afinco sobre as reais possibilidades de reintegração familiar, inserindo a mãe nos programas sociais existentes ou valendo-se do da atuação judicial para garantir o apoio necessário ao retorno da criança ao lar.
Contudo, esta assertiva não pode dar à mãe biológica o “direito adquirido ao abrigamento” da criança, como hoje está se consagrando na prática. Basta a situação de pobreza para que assistentes sociais, psicólogos, responsáveis por abrigos, promotores e juízes passem a ver o abrigamento da criança como um fato inevitável e corriqueiro. Compreende-se a situação do adulto diante das dificuldades sociais, permitindo-se o abrigamento da criança. Depois, constata-se que a mão visita mensalmente o abrigo e se afirma a existência de vínculo, apontando-se para a necessidade de sua manutenção. A experiência tem demonstrado que estas crianças com vínculos permanecem abrigadas por anos, sendo visitadas de forma irregular por suas genitoras. Ao tempo que se verifica a desvinculação afetiva, com o escasseamento ou a cessação da visitas, perde a criança um tempo vital de sua infância longe de uma família. Na maioria dos casos, a criança perde sua infância inteira.
Este dano afetivo tem profundas conseqüências psicológicas na criança institucionalizada. O curioso é que foram justamente os atores sociais que têm que garantir o direito da convivência familiar que permitem que sua infância transcorra integralmente longe de uma família, sob o irônico pretexto de defender a família. Em outras palavras: o fato da mão biológica visitar seu filho abrigado não pode permitir a prorrogação ad eternum de sua institucionalização. As visitas não são suficientes para a formação moral e psicológica da criança, tão pouco apontam para seu acolhimento afetivo minimamente razoável.
Portanto, a existência de visitação não pode ter o efeito paralizante e entorpecente que atualmente exerce sobre muitos profissionais. Nenhuma mãe tem “direito” a abrigar seu filho e fazê-lo viver numa instituição, ainda que se disponha à visita-lo periodicamente. Não há no direito brasileiro qualquer previsão neste sentido, muito pelo contrário, a consagração desta prática é completamente dissonante com o mandamento constitucional.
Deve-se registrar que a existência de efetivo vínculo afetivo não pode ser presumido, mas deve ser constatado por estudos sociais e psicológicos isentos de preconceitos, que partam do princípio de quem é o principal titular de diretos é a criança e o principal deles é a garantia à convivência familiar. É claro que a existência de visitas freqüentes pode significar a existência de afeto, digamos, ao menos indicia a possibilidade de restabelecimento da convivência rompida, e esta possibilidade tem que ser investigada e, sendo conveniente à criança, deve ser tentada. Porem, esta investigação e tentativa devem ser buscadas com responsabilidade com a criança, com seu tempo e formação.
Vale dizer, a experiência mostra que as visitas perduram enquanto a criança tem idade tenra e vão escasseando enquanto os anãos passam, sendo cada vez mais raras até se esgotarem sem qualquer explicação. É mais comum haver arrependimento e dúvida em relação ao abandono da criança enquanto ela é um bebê, sendo este sentimento paulatinamente esvaído enquanto ela cresce e caem seus dentes de leite. Este abandono gradual é mais nocivo que o instantâneo, porque a esperança da criança vai sendo adulada a cada visita, depois vai sendo soterrada pelos intervalos cada vez maiores, até ser assassinada por seu encerramento.
Depois de se exercer esta piedosa paciência com a mãe biológica, o sistema volta seu dedo inquisitor para os pretendentes à adoção, que devem estar preparados para suprir os anos de abandono, os traumas da falta de amor próprio, a possível sexualidade já desenvolvida ou se iniciando, a violência, a criação em ambiente coletivo, sem individualização, e tudo o que houver sido causado pela perplexidade imobilista que assola os poderes públicos. Estes, os pretendentes à adoção devem ser absolutamente compreensíveis com todas estas características e capazes de fazer sumir tais traumas e problemas, sob pena de serem considerados preconceituosos. Esta na ordem do dia o discurso que atribui a seletividade dos pretendentes à adoção a causa de estarem inúmeras crianças, negras, maiores de dois anos, grupos de irmão e portadores de necessidades especiais nos abrigos, como já foi mencionado anteriormente. Repita-se: no Brasil quem realiza atividades d conscientização dos pretendentes à adoção de que toda a criança pode fazer uma família feliz e vem conseguindo ampliar significativamente o número de adoções interraciais, tardias, de grupos de irmão e de portadores de deficiência, são os grupos de apoio à adoção, muitos sem qualquer apoio expressivo do poder público.

8. Soluções transitórias: tentativas pífias de se evitar a destituição do poder familiar

É imprescindível que se faça imediatamente uma revisão destes conceitos. Estamos anda cainhando entre uma concepção preconceituosa e equivocada para uma nova cultura, mais justa e eficaz no resguardo de direito fundamental da criança. Vivemos ainda sob a égide da criança-objeto, propriedade mal disfarçada de sua família biológica que pode por diversas vezes sonegar direitos essenciais sob o beneplácito das autoridades públicas, incluindo promotores de justiça e juizes de direito. Para esta família, em nome do princípio da proteção integral (!), garante-se toda a segurança jurídica, com a compreensão sem fim daqueles que justamente deviam evitar a institucionalização da criança. Padece esta posição pela demagogia comum às sociedades economicamente mal desenvolvidas e com disparidades sociais, nas quais há um sistema de compensação ideologicamente instituído no inconsciente coletivo, que determina uma demasiada tolerância com a conduta dos pobres, que passam a ser sujeitos de direito especiais, socialmente autorizados a doses de transgressões da lei cotidianas, seja em práticas inicialmente ilícitas que vão sendo toleradas até se imporem como realidade irreversível.
Toda a vez que se pretende dar a um determinado sujeito segurança jurídica absoluta, como é o caso proteção integral não confessada da família biológica, se coloca outro sujeito na perversa situação de insegurança jurídica absoluta, como se encontra toda a criança ou adolescente abrigado, com a certeza que não há certezas de qualquer natureza sobre seu futuro. Deve-se lembrar, sempre, que a proteção integral tem como destinatária a criança, ninguém mais. Os outros integrantes da família podem ser por este princípio tutelados, mas o são em função de ser imprescindível para a proteção da criança o amparo estatal do adulto. É em função dela, criança, que tudo se move e que todos são passíveis de proteção. Fazer deste princípio argumento para sua manutenção por tempo indeterminado em abrigo é, mais do que um raciocínio raso do ponto de vista intelectual, uma atitude de má-fé contra a infância.
Em determinadas oportunidades, operadores do direito lançam programas de famílias substitutas alternativos à adoção. Funcionam como um anestésico para as consciências pseudo-socialistas que não pretendem enfrentar o incômodo psicológico da destituição do poder familiar. Geralmente são projetos de famílias substitutas temporárias que se incumbirão da criação de crianças e adolescentes, enquanto a família biológica passa por programas de reestruturação para poder novamente receber em seu seio o filho afastado. Primeiramente é necessário pontuar que tais programas de famílias temporárias ou guardas subsidiadas partem de uma argumentação válida que é evitar a institucionalização da criança e de e permitir o aconchego familiar, âmbito do afeto e de sua manifestação física, o cuidado. Neste sentido há projetos válidos de famílias substitutas temporárias para que a situação jurídica da criança seja resolvida com celeridade, seja pela reintegração, seja pela destituição do poder familiar.
Neste sentido, de ser um mitigador do sofrimento da criança e de impedir sua institucionalização, este tipo de guarda é muito bem vindo e deve ser incentivada. Contudo, há nesta opção alguns riscos que devem ser considerados. A transitoriedade da guarda tem o inconveniente de permitir, em caso de delonga na resolução da situação jurídica da criança, que em regra dura anos, que a criança se apegue à família substituta e sua devolução para a família biológica reestruturada lhe cause mais prejuízos e traumas. Outro risco é a devolução em função de conflitos familiares, sobretudo na adolescência quando a natureza se encarrega de acentuá-los, por não ser a guarda irreversível juridicamente e depender da vontade do guardião. Assim, ao primeiro sinal de dificuldade, a família substituta devolve à criança ou o adolescente ao poder público, que, certamente, irá abrigá-lo, à mingua de outra solução. Os prejuízos para a criança serão incalculáveis e será muito mais difícil sua adoção após o segundo abandono e sua idade avançada.
Há uma forte sedução para as soluções transitórias, já que estas não exigem uma intervenção radical, ao contrário da adoção, que pressupõe uma desvinculação familiar da criança. Mas a realidade desaconselha estas medidas paliativas, salvo se a reestruturação familiar for definida em curto espaço de tempo, como por exemplo se uma família perde a sua casa em uma enchente e se problemas graves relacionais com os filhos, pretende abriga-los para reconstruir sua morada. Ou, ainda exemplificando, se uma criança é abandonada na rua e sua reintegração parece impossível por problemas como o alcoolismo ou outro vício grave, enquanto são feitos estudos necessários para confirmar esta inviabilidade da reintegração e permitir a colocação da criança em adoção.
Destarte, a transitoriedade da família substituta só é compatível com uma solução a curtíssimo prazo. A perpetuação do provisório é inconveniente aos interesses da criança, que permanece em insegurança jurídica absoluta, na maioria das vezes aguardando uma improvável recuperação de seus pais biológicos ou a intangível destituição do poder familiar. Não há nada que garanta que a solução será mais rápida para a criança em família temporária, já que o sistema não opera de uniformemente, havendo distorções na práxis jurídica da infância e juventude de comarca para comarca. O último inconveniente desta solução provisória é que o afeto surgido na relação da criança com a família substituta transitória tende a ser menos intenso que na relação adotiva, em que a assunção da paternidade decorre de uma atitude afetiva decidida a uma mudança de vida em prol da formação de uma nova família. A adoção pressupõe a vontade de ter um filho e o esforço neste sentido, em ambiente familiar estável e definitivo, propício ao afeto. O afeto da família transitória, condicionada à futura devolução da criança, não tende a ser isonômico ao afeto paternal, porque as pessoas se defendem de uma vinculação excessiva de quem terão que se separar no futuro. Se ainda no caso de acolhimento provisório, surgir um amor paternal, a situação futura poderá acarretar profundo sofrimento da família substituta e da criança se obrigados a separarem-se em respeito ao “direito” dos pais biológicos.

9. Considerações derradeiras

Já se falou, alhures, de uma nova cultura de garantia efetiva da convivência familiar. Isso só será possível partir de uma nova concepção da proteção jurídica destinada à criança e ao adolescente, pelo princípio da proteção integral, que realmente trate destes seres em formação, não raramente indefesos, como os principais sujeitos de diretos das relações familiares e sociais. É necessária uma atuação para além do discurso eloqüente e das soluções paliativas. Deve-se passar da criança-objeto para a criança-sujeito, credor de direitos e atuações ministeriais e judiciais corajosas e céleres.
Por fim, à guisa de uma conclusão alvissareira, espera-se que estas posições possam ser objeto de reflexão pelos atores sociais que lidam – ou que deveriam lidar – com a questão da criança institucionalizada no Brasil. São afirmações ásperas que costumam suscitar opositores apaixonados. Seria bem mais interessante que se apaixonassem pelas crianças abrigadas e por sua causa do que simplesmente pelo debate pseudo-acadêmico que frequentemente propõem. Talvez existissem mais atores do mundo real debruçados sobre os abandonos de crianças em instituições, cumprindo efetivamente seus deveres institucionais.
A criança é o verdadeiro sujeito de direitos destas relações jurídicas: credora do cuidado de sua família e de uma paternidade responsável, credora do cuidado do Ministério Público, através da sua atuação personalizada, rápida e eficaz, credora do cuidado do Judiciário, traduzido pelo conhecimento do problema, desburocratização de procedimentos, bem como de decisões corajosas e garantidoras de seu direito a uma família. Cuidemos, pois, desta pessoa especial, em formação, com a dedicação e a celeridade necessárias, com o afeto que se encerra em nosso peito eternamente juvenil.




 
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